Beatriz Ramos
Formada em Letras pelo Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos (UNIFEOB). Durante a graduação, dedicou-se à pesquisa sobre a romantização de discursos violentos na sociedade, baseando-se no livro Lolita, de Vladimir Nabokov. Fez teatro durante 5 anos, adquirindo seu DRT de atriz em 2016 e foi voluntária em uma ONG de sua região durante o ano de 2019. Seu objetivo de vida é colaborar com a democratização da informação no Brasil, proporcionando uma educação transformadora e de qualidade para todos, além de combater
qualquer forma de injustiça de gênero.
O Dilema de P.H.
Como lidar com o aluno problema?
P.H. chegou 1 mês atrasado para a aula.
Quando entrei na sala, a princípio, não tinha reparado em nada, além do comum: crianças em pé, conversando umas com as outras – umas de maneira amigável, outras nem tanto. Só observei, alguns segundos depois, que havia uma roda de meninos no canto direito, ao redor de uma única mesa.
– Sou novo, professora, não lhe conheço! – disse a voz no centro daquele círculo.
Surgiu, então, abrindo a roda, um garotinho baixinho, com um sorriso esperto e banguela no rosto e uma maturidade nas palavras não muito comum para alguém de 10 anos de idade.
– É mesmo? E qual é o seu nome?
– P.H.
– Humm… Seja bem-vindo! Me diga aí, qual é o seu filme preferido?
Ele me olhou desconfiado, como se a pergunta tivesse qualquer outro sentido além daquele que aparentava e eu quisesse mesmo lançar uma pegadinha.
– Pra quê isso?
– Ué, porque todo mundo aqui me contou o seu filme favorito e agora falta só você…
– Invocação do Mal – respondeu subitamente, olhando ao redor para contar quantos risos conseguiu com sua resposta inesperada.
– Hum, que interessante. Eu também gosto desse filme!
– Hum. Tá. – disse ele, virando as costas e voltando para a atividade anterior, que chamou tanto a atenção dos meninos da sala: lançar um corretivo (objeto proibido na escola) para cima e para baixo.
P.H. era muito esperto. Na mesma medida, era inquieto. Não me lembro de ter conseguido fazê-lo permanecer sentado na cadeira por 15 minutos ininterruptos. Na sala dos professores, era assunto cotidiano: “Terrível!”, “Sem educação!”, “Não deixo mais na minha aula”.
Às vezes, eu pensava isso também.
Era muito cansativo. Nada para ele era novo ou atraente o suficiente para desviar a sua energia do lançamento de corretivo. Me lembro que, em alguns dias, eu repetia o seu nome tantas vezes que qualquer pessoa que passasse pela porta pensaria que era uma aula particular. Tinha a impressão de que ele não estava aprendendo absolutamente nada e, além de não estar aprendendo, ainda prejudicava a concentração da sala toda.
No dia da avaliação, pensei que seria o grande momento de fazê-lo refletir sobre como o comportamento dele estava prejudicando o seu aprendizado. Fez a prova em 30 minutos. Pensei: “Não deve ter lido nada!” e quando me vi escrevendo um “DEZ!” no canto superior esquerdo da folha, me assustei: “Qual é o mistério desse menino?”.
Eu passava horas tentando entender o que eu chamava de “Dilema de P.H. – acolher ou afastar?”, mas confesso que, em alguns dias, não tive a paciência de refletir:
– Por favor, P.H., saia da sala!
– Não, professora! Por favor…
– Não dá, eu já pedi pra você guardar esse corretivo várias vezes e você não colabora. Por favor, saia.
– Não, professora, eu juro que fico quieto. Por favor!
– Não posso, P.H., o que vale para um, vale para todos. Saia, por favor.
– Sai logo, menino! Você só atrapalha! – uma voz gritava no fundo da sala
Saiu cabisbaixo. Senti pena, mas não podia recuar, não era justo com o restante da turma.
– Eu não sei mais o que eu faço com esse menino! – disse eu à minha tutora, após sua observação de uma das aulas mais caóticas que dei na minha vida, protagonizada por P.H. e outro estudante.
A figura do tutor, dentro do Ensina Brasil, é a pessoa responsável por nos acompanhar ao longo dos dois anos, observando algumas de nossas aulas e compartilhando impressões e reflexões sobre pontos positivos e pontos em desenvolvimento.
– Ele quer atenção, mas é preciso entender que nem sempre é só sobre ele. Que tal chamá-lo mais para perto? Usar essa questão de querer chamar atenção ao seu favor? – disse ela.
Ta aí. Ele quer atenção? Pois, então, vamos nessa!
– P.H., escreva a data aqui na lousa para mim, por favor?
Não respondeu nada, apenas ficou me olhando como se, novamente, eu estivesse fazendo algum tipo de pegadinha.
– Vamos! Você não quer escrever não?
Levantou-se com os olhos fixos em mim, como quando um gato te encara e você não sabe se ele vai pedir carinho ou te atacar. A turma toda acompanhou seu caminhar até o quadro, na expectativa de que, no meio do caminho, ele fosse aprontar alguma.
– Tá. E agora? – perguntou depois da escrita
– Escreva, por favor, o objetivo da aula de hoje. Esse aqui. – disse, apontando meu caderno.
– Tá. – escreveu com calma, sem nenhum desvio de ortografia ou pontuação.
– Pronto. Muito obrigada! Pode voltar para o seu lugar.
– Não tem mais coisa pra escrever, não?
– Por enquanto, não. Mas, que tal você se sentar aqui na frente? Porque aí, quando tiver, fica mais fácil de eu te chamar pra escrever.
– É mesmo. Pode ser. – voltou à sua antiga mesa para pegar suas coisas, sorrindo e olhando ao redor, enquanto ainda segurava o pincel de lousa (que, agora, estava amarrado no cadarço que ele usava como cinto).
Eu nunca tinha visto P.H. tão atento à aula. Respondia, lia, escrevia, participava, pedia silêncio. Não deixava de fazer suas piadas, mas também não extrapolava como antes. “Consegui!”, pensei.
Essa rotina se estendeu por alguns dias, mas não demorou muito até ele voltar para o fundo, com seu corretivo e suas piadinhas sem limites.
– P.H., quer escrever a data aqui na lousa?
– Não, valeu. Tu tava me enrolando pra eu parar de brincar na aula, só. – disse em tom decepcionado, como se eu o tivesse traído.
Ele estava mais participativo, é fato, mas não do jeito que eu gostaria. Respondia, mas também desenhava o tempo todo: ferramentas do Free Fire – um jogo eletrônico de ação, cujo principal objetivo é eliminar os adversários para sobreviver – e até mesmo algumas das minhas tatuagens.
– São maneiras! Custou caro?
– Um pouco.
– Quando eu crescer, vou querer fazer!
Aos poucos, consegui me aproximar dele, mesmo após muitas idas e vindas e muitas desconfianças dele sobre mim. Me contou que gostava de quebrar regras e que só chorava quando a mãe batia. Gostava de funk e jogos que envolviam sobrevivência e inimigos, mas não tinha celular pra jogar, então só ficava assistindo os colegas da escola. Disse que as aulas de Português eram legais, mas muito fáceis, porque ele já sabia tudo e “nem tinha repetido de ano pra isso, só era inteligente mesmo”.
A partir daí, firmamos um contrato:
– Você colabora comigo e eu colaboro contigo, fechou?
– Fechou, professora!
Lidar com o estigma do “aluno problema” não é fácil para nenhum dos lados. Sentir que desistiram de você deve ser uma sensação tão ruim quanto sentir que você não está fazendo um trabalho bom o suficiente para cativar um estudante. Essa experiência com P.H. me marcou por me trazer a certeza de que o afeto é poderoso, mas que, nem sempre, é suficiente ou, às vezes, é até demais.
Não há receita pronta para lidar com seres humanos e quase nunca vamos vencer todos os desafios que nos atravessam dentro e fora da sala de aula. Eu não sei responder à pergunta sobre como lidar com o aluno problema, só sei que, graças a ele, eu quase desisti, mas também, graças a ele, eu me dei conta de que fui a melhor educadora que podia naquele momento e sigo sendo a melhor que posso no momento presente para todos os meus alunos – “problemas” ou não.
2 comentários em “Escritos de um(a) ensina: O poder do afeto”
Muito boa experiência. Deve ser desanimador quando não onsegue alcança um aluno. Parabéns pela atuação.
Muito boa experiência. Deve ser desanimador quando não consegue alcança um aluno. Parabéns pela atuação.